Esfaqueou ex por ciúme e foi absolvido: como defesa da honra chegou ao STF

Durante o relacionamento, ele a proibia de sair de casa, tinha rompantes de fúria e se mostrava violento. O casal se separou, mas, uma semana depois, o homem ainda perseguia a ex-mulher. Na noite de 25 de maio de 2016, foi atrás dela dentro da Igreja Evangélica Missão e Avivamento, na cidade de Nova Era (MG). Puxou-a pelo braço e, no meio da conversa, viu uma mensagem no celular da ex com a frase “te aguardo no mesmo lugar”. Segundo ele, nesse momento, “bateu um trem doido”: com uma faca de serra — mais tarde, afirmou à polícia sempre andar com uma —, deu três golpes na mulher, na cabeça e nas costas.

Essas informações fazem parte do depoimento do próprio agressor confesso. A mulher foi levada para um hospital, passou por uma cirurgia e sobreviveu. Ele foi preso em flagrante. “Desferi três facadas na minha ex, pois vi várias conversas amorosas no celular dela, sou trabalhador e não posso aceitar de foram alguma uma situação humilhante dessas”, afirmou, segundo uma testemunha, ao ser levado pela polícia.

Em junho 2017, o réu, Vagner Rosário Modesto foi a júri popular. Os jurados abraçaram seu argumento de que havia perdido a cabeça por causa do comportamento da mulher, agindo por “legítima defesa da honra”, e o absolveram por unanimidade. Ele foi solto na sequência. O caso é público, assim como as decisões da Justiça. Não chegou a ter repercussão: no jornal local, um texto breve explicando o que havia acontecido foi publicado no dia seguinte ao crime. Nesta reportagem, o nome da vítima, que na época tinha 18 anos, foi suprimido para manter seu anonimato.

A legítima defesa da honra não existe legalmente. Surge nos embasamentos dos advogados como uma variável da legítima defesa, esta, sim, prevista no Código Penal como a situação em que entende-se não haver crime se a pessoa estiver se defendendo de uma agressão, mesmo iminente, ou estiver defendendo alguém. A deia desse argumento é abrandar a pena ou mesmo livrar de punição o homem que cometeu o crime afirmando que o fez para defender sua honra, manchada por causa de algum tipo de conduta da vítima, como uma traição.

Vem sendo criticada com veemência há, pelo menos, 40 anos, desde que uma mobilização nacional de coletivos feministas pediu um novo julgamento do caso Doca Street, playboy que matou Ângela Diniz em 1976 e afirmou ter cometido o crime porque ela o havia provocado, seduzindo outros homens e mulheres mesmo durante o relacionamento. Em um primeiro momento, Doca foi liberado do cumprimento da pena de dois anos de prisão. Em 1981, a pressão surtiu efeito. Ele foi julgado novamente e condenado a 15 anos de prisão.

Alexandre de Moraes: defesa da honra fez do Brasil campeão em feminicídios

Após o resultado do júri absolver Modesto, o Ministério Público de Minas Gerais pediu um novo julgamento. O Tribunal de Justiça do estado autorizou, assim como o STJ (Superior Tribunal de Justiça). A defesa recorreu para que se mantivesse a decisão, e o caso foi levado ao STF (Supremo Tribunal Federal). No último dia 29 de setembro, por três votos a dois, a primeira turma do Supremo decidiu que não deveria haver novo julgamento, uma vez que o júri é soberano em sua decisão. O ministro Alexandre de Moraes, um dos votos vencidos, afirmou que deveria haver um segundo julgamento para que se imputasse uma sentença, e esse, então, poderia ser considerado definitivo.

“Até décadas atrás, no Brasil, a legítima defesa da honra era o argumento que mais absolvia os homens violentos que mataram suas namoradas e esposas, o que fez o país campeão de feminicídio”, disse. O Brasil ocupa o quinto lugar no ranking dos países que mais matam mulheres no mundo, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde).

A Comissão Nacional da Mulher Advogada da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) prepara um documento questionando a decisão do STF. O processo dividiu juristas uma vez que a soberania de um júri popular é garantida pela Constituição. Gerou, inclusive, discórdia entre os próprios ministros.

Além de Moraes, o ministro Luís Roberto Barroso também foi a favor de um novo júri, dizendo que chancelar a absolvição seria passar a mensagem “de que um homem, ao se sentir traído, pode esfaquear a sua mulher, tentando matá-la em legítima defesa da honra ou seja lá em que tese se possa definir. Não parece que no século 21 essa seja uma tese que possa se sustentar”. Única mulher entre os cinco ministros da primeira turma, Rosa Weber foi a favor da “norma constitucional” e votou contra novo julgamento.

Especialista em Direito Penal e Processual e professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), Maíra Zapater afirma que a decisão do STF, apesar de envolver a absolvição de um réu confesso por tentativa de feminicídio, está de acordo com a Constituição. “Só seria permitido fazer um novo júri caso a decisão dos jurados fosse contra as provas. Se dissessem, por exemplo, que ele não tentou matar a mulher”, explica.

O tema voltará para votação no STF, em plenário, ainda sem data definida. Para Alice Bianchini, doutora em Direito Penal e vice-presidente da Comissão Nacional da Mulher Advogada, se o Supremo aceitar que deve haver novo julgamento, estará relativizando a soberania dos jurados, mas essa seria a melhor decisão. “O princípio da soberania do júri não pode ser entendido como autorização para julgar de forma absurda, atentando, inclusive, contra outro princípio constitucional importante, que é o da dignidade da pessoa humana”, diz.

“De qualquer maneira, o caso nos faz pensar o quanto essa ideia de o homem ter direito de lavar sua honra ferindo a companheira ainda encontra eco na população”, diz Maíra.

“Tese legitima milhares de mortes no país”, diz advogada

A advogada Gabriela Souza, do escritório Advocacia para Mulheres, de Porto Alegre, afirma que, por mais que a tese da “legítima defesa da honra” seja considerada ultrapassada pela maioria dos juristas, até hoje é usada por advogados e aceita por juízes em tribunais de todo o país.

“O advogado que usa esse termo tem uma conduta antijurídica ao usar uma tese machista, ultrapassada e responsável pela legitimação de milhares de feminicídios”, opina. “Acredito que a OAB deveria cobrar algum tipo de postura em relação a isso.”

Há, inclusive, decisões de altas instâncias para que esse tipo de argumento não seja mais aceito. Em 2019, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) rejeitou um recurso de réu denunciado por matar a mulher por ela ter dançado e conversado com outro homem em uma festa. Ele a asfixiou com uma corda. A defesa afirmou que a vítima havia adotado “atitudes repulsivas” e “provocativas” contra o marido.

Em sua decisão sobre o caso de feminicídio, o ministro do STJ Rogerio Schietti Cruz afirma que a tese da legítima defesa da honra é inaceitável porque “não vivemos mais períodos de tristes memórias em que réus eram absolvidos em plenários do tribunal do júri com esse tipo de argumentação”.