Um bolinho, um churrasco com os amigos ou um passeio no shopping com direito a cinema com a família e colegas de sua idade. A programação de aniversário de João Pedro Matos envolvia um dia inteiro ao lado de quem o ama. No próximo dia 23, ele completaria 15 anos — e só não repetiria o ritual por causa da pandemia de coronavírus. A família de João Pedro, no entanto, tem a lembrança das comemorações atravessada por uma dor: no dia 18, completa-se um mês em que ele foi morto durante ação das Polícias Civil e da Polícia Federal em São Gonçalo (RJ).
Segundo a Delegacia de Homicídios de Niterói, São Gonçalo e Itaboraí, que investiga o crime, o projétil entrou no corpo de João Pedro pela região torácica posterior —nas costas, na altura da axila direita, e ficou alojado no corpo do menino. Os policias civis alegam que ele foi baleado durante troca de tiros entre eles e traficantes; a família fala que o imóvel em que João Pedro estava foi invadido pelos agentes da corporação.
O “caso João Pedro” ganhou repercussão mundial: até mesmo a atriz Viola Davis divulgou a petição que pede justiça pela morte do adolescente, atingido por uma bala do mesmo calibre do fuzil usado por policiais. No Rio, a morte de mais um jovem negro também gerou protesto nas ruas, no dia 31 de maio. Os manifestantes ergueram vozes e bandeiras para lembrar que “Vidas Negras Importam”.
Em meio ao luto, Rafaela Coutinho Matos, mãe de João Pedro, conversou com Universa sobre a repercussão do caso e como o núcleo familiar — ela, o marido Neilton da Costa Pinto e a filha, Rebeca, de 4 anos — tem vivido a ausência de João.
“Agora, a gente está nessa luta por Justiça. Focando um pouco nisso, tentando ficar tranquilo. Porque agora começam os depoimentos [do caso]”, diz. “E não que a luta traga ele de volta, mas vamos ter um alívio. Só um aliviozinho.”
Na última vez que falou com ele, João Pedro pediu “Calma”
“No dia do desaparecimento, eu estava em casa e ele na casa do primo, que é aqui perto. E já estava aflita, porque eu estava escutando barulho de helicóptero e ele estava dando muito tiro. Fiquei apreensiva. Além de ele estar lá, meu esposo e minha sogra estavam trabalhando em um quiosque — só que não conseguiram ir à casa por causa dos tiros.
Minha cunhada estava mantendo contato com João [por troca de mensagens e áudios apresentada pelo Fantástico], e até orientou que caso alguém batesse lá, algum policial, era para que eles abrissem a porta, deixassem entrar.
Eu mandei uma mensagem para ele, falando que eu estava preocupada. Ele falou para mim: “Fica calma, mãe, que meu tio já está vindo para cá”. E foi a última vez que eu falei com ele.
Fui fazer uma oração. Orei bastante até conseguir falar com minha cunhada. Ela falou para eu me acalmar. Depois eu fiquei mandando mensagem, ligando para ele e ninguém me atendia.
No finalzinho da tarde, quase escurecendo, meu esposo chegou aqui sendo carregado, porque ele é hipertenso. Foi aí que me deram a notícia de que João Pedro tinha sido baleado, mas que tinha sido socorrido por um helicóptero. E, então, pedi para minha sobrinha colocar nas redes sociais [que ele estava desaparecido] para gente saber para onde tinham levado.
Foi aquela correria, juntou um mutirão de gente. Um procurou de um lado, outros procuraram de outro. Isso durou praticamente a noite toda, e só fomos saber no dia seguinte [os familiares encontraram o corpo de João Pedro, dezessete horas depois, no IML aqui de Tribobó, em São Gonçalo].
Os dias após a perda: “Noites em que não consigo dormir”
“No dia 18, completa um mês do acontecido. De lá para cá, eu tenho vivido um dia de cada vez. Tem sido muito difícil, são noites que não consigo dormir, porque as lembranças vêm o todo tempo. Em tudo que eu vou fazer, nas coisas que eu lembro que ele gostava de fazer.
Só Deus mesmo. Se não fosse Ele nas nossas vidas, a gente não conseguiria suportar tamanha dor. E o carinho de todos, as orações que têm sido feitas por nossas vidas também são importantes – aliás, o mundo inteiro tem orado pela minha família. Mas só Deus nos sustenta em pé para seguir em frente e recomeçar.
Nós somos evangélicos, frequentamos a Igreja Congregacional Colina da Fé, perto da nossa casa mesmo. João Pedro também era. Ele foi batizado quando tinha 12 anos e a rotina dele era de casa para escola e igreja, e sempre junto comigo e com o pai. Nunca estava sozinho.
Então, nós mantemos nossa fé firmada em Deus. Temos buscado refúgio Nele nesse momento de dor”.
“O pai está calado. Agora, a gente está nessa luta por Justiça”
Nós, familiares, e eu, enquanto mãe, não imaginávamos que teria toda essa repercussão. Não tem como dizer que a gente fica feliz com ela, porque não teremos nosso filho de volta. Mas no que ela ajuda é que não vai ser mais um caso que vai ficar impune. A gente acredita que Deus estando no controle, a justiça será feita.
Eu vejo algumas coisas nas redes sociais, do que falam, apesar de tentar evitar isso e reportagens.
Meu esposo, agora, está tentando ser forte. Até porque tem aquela ideia de que o homem tem que ser assim. Nesses últimos dias, porém, ele tem ficado mais calado, pensativo.
Eu tento conversar com ele, falo para ele chorar, porque é bom colocar para fora o que está sentindo.
Agora, a gente está nessa luta por justiça. Focando um pouco nisso, tentando ficar tranquilo. Porque agora começam os depoimentos [do caso]. E não que a luta traga ele de volta, mas vamos ter um alívio. Só um aliviozinho“.
A irmã, de 4 anos, tem chorado muito
Eu falei para ela que o irmãozinho dela estava no céu e que ela não iria mais vê-lo. Ela ficou quieta, não falou nada.
“A Rebeca, nossa filha de 4 anos, não sabe expressar o que está sentindo e também não está entendendo o que está acontecendo. Para gente, que é adulto, já é difícil. Tentamos não chorar perto dela, o que é quase impossível. Ela já perguntou por ele várias vezes e a gente sempre dá essa resposta.
Por ela não saber colocar para fora, o comportamento tem mudado bastante: tem feito de tudo para chamar atenção. Tem chorado muito. Às vezes, é uma reportagem que passa, a gente troca de canal e ela percebe.
Tem momentos que ela conta para alguém do irmão, fala que ele está no céu. E, em casa, vira e mexe ela conta que o irmão falou para ela de um desenho, de alguma coisa. Mas acho que tem sido bem difícil para ela também”.
Aniversários da família, um bolinho e passeio no shopping
“O João completaria 15 anos no dia 23. E a ansiedade dele era notória, porque ele perguntou como iria ser nesse momento de pandemia, já que ele sempre comemorava no shopping ou com uma festinha em casa, um churrasco com os amiguinhos dele. Ele falou que neste ano a gente não conseguiria sair. Eu respondi: ‘Filho, você não vai poder ir agora, mas quando passar a pandemia, a gente vai’.
E ia toda a família, alguns amiguinhos e o primo, como aconteceu quando ele fez 14. Era ir ao shopping e ao cinema, com o pessoal da idade dele. Todo mundo ficava ansioso porque meu esposo faz aniversário no dia 19 [Neilton fará 41 anos], eu no dia 20 [Rafaela fará 37 anos] e ele, 23. Mas a gente comemorava no dia dele.”