Documentos obtidos pelo UOL reforçam a hipótese de que um homem rendido foi morto por policiais dentro do quarto de uma menina de 9 anos durante a Operação Exceptios —que resultou em 28 mortes na favela do Jacarezinho, em maio.
Os relatos das circunstâncias da morte feitos pela família que mora no imóvel não foram investigados pela Polícia Civil —segundo os moradores, ele estava desarmado. O laudo de perícia também indica que a vítima não trocou tiros no local.
Omar Pereira da Silva, um homem negro de 21 anos, foi morto com um tiro no peito, pouco abaixo do coração, segundo o laudo de necropsia. O disparo provocou ferimentos no pulmão e rim esquerdos, fígado, diafragma e alças intestinais.
Apesar da gravidade das lesões em múltiplos órgãos, os policiais alegaram que ele estava vivo para removerem o corpo do local com a justificativa de levá-lo a um hospital. Omar era um dos alvos dos 21 mandados de prisão que deram origem à operação policial mais letal da história do Rio.
Embora a investigação conduzida pela Polícia Civil passe ao largo de apurar a hipótese de morte sem chance de defesa por agentes, documentos reunidos no inquérito corroboram essa possibilidade.
Moradores não foram ouvidos pela polícia
O laudo de perícia realizada no local indica que Omar não trocou tiros dentro do imóvel.
“Não foram constatados sinais característicos de confronto no interior do imóvel residencial. Acrescenta o perito que o local encontrava-se não preservado e que a área conflagrada prejudicou os exames periciais”, diz trecho do documento.
A versão de que o homem foi morto sem chance de rendição foi levantada primeiramente pelos pais da menina que dorme no quarto onde ele foi baleado. Eles relataram as condições da morte à imprensa e a representantes da OAB-RJ (Ordem dos Advogados do Brasil), mas a Delegacia de Homicídios não colheu o depoimento deles, segundo o inquérito —que já foi encaminhado ao MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro).
O casal de comerciantes afirmou, em entrevista ao UOL no dia seguinte à operação realizada em 6 de maio, que Omar invadiu o apartamento desarmado em busca de socorro após ter sido baleado em um dos pés. No momento em que os policiais arrombaram o portão do prédio, ele se escondeu no quarto da filha do casal, de 9 anos.
“O policial apontou o fuzil direto na minha direção. Aí, eu gritei: ‘Sou morador! Tô com criança!’. Ele respondeu: ‘Sai morador’. Não deu nem tempo de sair. Ele efetuou o disparo e matou o rapaz no quarto da minha filha. Depois, ouvi mais dois tiros. Quando descemos, vimos outros policiais. Aí, a minha filha me perguntou: ‘Papai, vão matar a gente?’.”, afirmou o pai da criança.
A mãe da criança afirma que Omar não estava armado quando foi morto —os policiais apresentaram na delegacia uma pistola Glock, calibre .40 com kit rajado, como tendo sido apreendida com o homem.
“Ele [Omar] só disse: ‘Me ajuda, pelo amor de Deus’. Ele não estava armado e só pediu uma toalha para cobrir o ferimento”, disse a moradora.
Policial diz que homem apontou arma antes de ser morto
Em depoimento, os dois policiais envolvidos diretamente na morte dão relatos idênticos. Os relatos foram inseridos no sistema da Polícia Civil com um intervalo de 35 minutos e têm trechos inteiros iguais, o que indica que podem ter sido copiados e colados.
Segundo o software Copyleaks —sistema utilizado para, entre outras coisas, flagrar a ocorrência de plágios em trabalhos acadêmicos—, a equivalência no conteúdo dos documentos é superior a 84%. Na semana passada, o UOL revelou que outros depoimentos de policiais envolvidos em mortes na operação foram praticamente iguais.
Um dos policiais declara ter atirado contra Omar. Em sua versão, o suspeito empunhava “uma arma em sua direção”.
“O declarante então para se defender da injusta agressão efetuou disparos com o fuzil que portava”, afirma o depoimento. Ele diz ainda não se recordar quantas vezes atirou por causa “do estresse do momento”.
Apesar de o policial admitir que atirou com seu fuzil em Omar, o laudo cadavérico da vítima afirma que ele foi atingido por um projétil de baixa energia, incompatível com esse tipo de armamento —a munição de fuzis é considerada de alta energia em perícias.
O laudo cadavérico também não descreve a lesão que o jovem teria no pé, segundo os moradores.
Investigação focou em envolvimento de morto com o tráfico
A única pessoa ouvida além dos policiais foi uma tia de Omar —a oitiva foi conduzida apenas no sentido de confirmar o envolvimento do morto com o tráfico, sem buscar elementos sobre as circunstâncias de sua morte.
Também foram anexados ao inquérito documentos e informações de bases cadastrais mantidas pela Polícia Civil com o histórico de registros de ocorrência, prisões e passagens pelo sistema prisional do morto —dados que não ajudam a esclarecer se ele foi morto em um confronto legítimo ou vítima de morte sem chance de defesa pelos policiais.
O que diz a Polícia Civil
Procurada pelo UOL, a Polícia Civil não respondeu perguntas sobre o fato de a denúncia de morte sem chance de rendição não ter sido investigada.
Também não explicou por que os moradores que testemunharam a morte de Omar não prestaram depoimento até agora, tampouco respondeu sobre o fato de os policiais terem desfeito a cena do crime e prejudicado a perícia.
Em nota, a Polícia Civil afirmou apenas que “as investigações estão em andamento, acompanhadas pelo Ministério Público, e a Polícia Civil só se pronunciará no final, evitando qualquer antecipação ou especulação”.