Pouco mais de dois meses após o início de um monitoramento pela rede de saúde, o Brasil já registra 375 casos de uma síndrome inflamatória grave em crianças e adolescentes que vem sendo investigada por sua possível ligação com o novo coronavírus.
Os dados são de um novo levantamento feito pela Folha junto a secretarias estaduais de Saúde e em boletins do governo federal. Para comparação, até 26 de agosto, balanço do Ministério da Saúde apontava 197 casos —um avanço de 89% em cerca de um mês.
Para especialistas, os registros ainda apontam para uma síndrome relativamente rara, mas que exige atenção e acompanhamento por sua gravidade —há ao menos 26 mortes— e por se tratar de uma nova doença, cuja evolução ainda não é totalmente conhecida.
O quadro tem sido chamado de Sim-P, sigla para síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica, com registros no país em crianças e adolescentes de 0 a 19 anos.
No Brasil, um primeiro alerta sobre a doença foi feito em maio pela SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria), após casos na Europa. Dois meses depois, em 24 de julho, o Ministério da Saúde divulgou um documento aos estados orientando a notificação.
O objetivo é ter um acompanhamento dos casos da síndrome, que vem sendo qualificada como “temporalmente associada a Covid”.
Isso ocorre porque a maioria das crianças e adolescentes diagnosticadas com a Sim-P apresentou resultado positivo para anticorpos do novo coronavírus. Outras tiveram confirmação para a Covid-19 em exames de RT-PCR ou contato com pessoas que tiveram a doença.
Segundo o pediatra Marco Aurélio Sáfadi, do Departamento de Infectologia Pediátrica da SBP, ao mesmo tempo que o registro de novos casos tem reforçado a ligação com o vírus, ainda não há uma explicação sobre o que leva uma parcela pequena a desenvolver o quadro.
“É uma incógnita. Nas casuísticas [estudos de casos], em geral, três quartos são crianças saudáveis, que nada tinham tido anteriormente. Que fator de risco leva a isso ainda não sabemos”, afirma.
Até o momento, estudos têm apontado para uma espécie de reação imune “desregulada”, como uma resposta exagerada do organismo à infecção pela Covid.
“Hoje as evidências sugerem que o vírus desempenha um papel como um gatilho”, diz Sáfadi. “É cada vez mais sólida a convicção de que esses casos são fruto de uma resposta imune desbalanceada.”
Os sintomas começam com febre alta e persistente, com possibilidade de dor abdominal, vômito, diarreia, conjuntivite e aparecimento de erupções e inflamações na pele.
Em nível mais grave, há possibilidade de alterações cardíacas, respiratórias, no sangue, na pele e no sistema nervoso —daí o alerta para a necessidade de um diagnóstico precoce. O quadro e a intensidade também variam conforme cada criança.
Embora bastante semelhante a outro quadro raro, chamado de síndrome de Kawasaki, a Sim-P tem peculiaridades, diz Marcos Guchert, que acompanhou seis casos no Hospital Infantil Joana de Gusmão, em Florianópolis.
“É realmente uma doença nova. Não estávamos acostumados a ver esse quadro na faixa etária do adolescente, nem com tanta manifestação gastrointestinal”, diz ele, segundo quem um aumento recente dos registros tem chamado a atenção.
“Nosso primeiro caso foi em julho, o segundo em agosto e só nesse mês de setembro mais quatro casos”, diz ele, que associa as ocorrências a registros recentes da Covid no estado.
Ainda segundo os especialistas, quando detectados e tratados em tempo adequado, os casos têm apontado para uma boa recuperação, embora boa parte dos pacientes precisem de internação, que vai de cinco a dez dias.
O registro de mortes no país, no entanto, chama a atenção. Segundo dados dos estados, a letalidade média no Brasil seria de 6%, acima da média de outros países, que é de 2%.
Para a infectologista pediátrica Glaucia Ferreira, que acompanha casos em Fortaleza, uma eventual subnotificação é um fator que precisa ser avaliado. “Inicialmente se pensava que era mais raro, mas temos achado que há um número maior que não está sendo diagnosticado”, avalia.
Outra dúvida é como evoluirá a recuperação, afirma ela, que cita necessidade de acompanhamento com exames periódicos após a alta por causa de sintomas graves —caso de pacientes que tiveram insuficiência cardíaca, por exemplo.
O avanço de casos da Sim-P ocorre ao mesmo tempo que estados apontam envio irregular, pelo Ministério da Saúde, de imunoglobulina, indicada no tratamento de pacientes com imunodeficiências e outros quadros —como a Sim-P.
A situação tem levado estados a fazer remanejamentos entre municípios ou compras extras para evitar falta do produto, “mas grande parte delas sem sucesso, em virtude de problemas no mercado”, diz em nota o Conass, conselho que representa secretarias de Saúde.
Segundo o conselho, o abastecimento irregular começou a ser registrado no final de 2019, quando contratos de compra do Ministério da Saúde foram suspensos por órgãos de controle.
O problema é confirmado por ao menos 11 estados ouvidos pela Folha. Entre eles, Minas Gerais e Maranhão dizem que estão sem estoques. Nos demais, os relatos são de baixos estoques e até falta pontuais.
Questionadas, secretarias de Saúde dizem que o problema ainda não afetou o tratamento da nova síndrome, mas o quadro é de alerta.
A Bahia, por exemplo, diz ter recebido só 30% do valor solicitado para o terceiro trimestre —e com atraso. Para o quarto trimestre, foram solicitados 2.463 frascos. Mas o Ministério da Saúde sinalizou a entrega de 190.
Situação semelhante é apontada por Pará, Santa Catarina e São Paulo, entre outros.
Procurado, o Ministério da Saúde diz que, “diante da pandemia da Covid-19, as empresas contratadas manifestaram dificuldades em cumprir o cronograma de entrega”.
A pasta afirma que, na tentativa de evitar falta, finalizou uma compra emergencial de 50 mil unidades em 15 de setembro, com entregas parceladas de 10 mil unidades —a primeira ocorreu há três semanas e o volume tem sido distribuído. Uma outra compra está em andamento, informa.