Governo deve reduzir papel de municípios para cortar custo do Bolsa Família

O governo federal planeja esvaziar o papel dos municípios no cadastramento de novos beneficiários de programas sociais como o Bolsa Família para reduzir custos com as políticas de proteção social, revelam documentos obtidos com exclusividade pelo UOL.

O Ministério da Cidadania quer priorizar o autocadastramento de beneficiários no CadÚnico (Cadastro Único para Programas Sociais) por meio de um aplicativo para celular, nos mesmos moldes do que foi feito com o auxílio emergencial. Essa deve ser, desde a criação do Bolsa Família (2003), a maior mudança no CadÚnico, que contém informações sigilosas de mais de 77 milhões de brasileiros em situação de vulnerabilidade social e pobreza.

Em uma apresentação interna sobre o tema obtida pela reportagem, o Ministério da Cidadania lista uma série de motivos para a mudança. Entre eles, estão “reduzir custos de transferência de renda” e “mudar paradigma de programas assistenciais para programas de aumento da renda”. Não há nenhuma ponderação sobre o impacto dessas mudanças na rede de assistência social.

Em conversas internas, responsáveis pelo projeto enfatizam ainda o combate a supostas fraudes nos programas sociais, apesar de o governo federal já adotar medidas rigorosas de checagem dos beneficiários. Para justificar as mudanças, usam como exemplos casos pontuais de pagamentos indevidos, como o de um gato que teria sido cadastrado como beneficiário do Bolsa Família por um entrevistador.

O CadÚnico centraliza os beneficiários do Bolsa Família e mais de uma dezena de programas sociais, como o Minha Casa Minha Vida e o BPC (Benefício de Prestação Continuada).

Hoje, famílias são incluídas nos programas sociais por meio dos Cras (Centros de Referência de Assistência Social) e outros equipamentos públicos para essa finalidade.

Elas são entrevistadas por servidores públicos treinados na aplicação do questionário —que pede informações, como dados pessoais, de moradia, renda, etnia e possíveis vulnerabilidades da família.

O público dos programas sociais sofre com problemas como analfabetismo e dificuldades de acesso à internet. Isso dificulta o acesso à política de assistência social e reduz a qualidade das informações obtidas, segundo apontam especialistas, servidores de carreira do Ministério da Cidadania e ex-gestores do Cadastro Único consultados pelo UOL.

As informações também são usadas para nortear políticas públicas de diversas áreas, como habitação, saneamento, saúde e educação.

Conforme o projeto do aplicativo, o beneficiário terá que responder a perguntas complexas e com vocabulário técnico. Precisará informar por exemplo “qual é a espécie de seu domicílio”, tendo como opções de resposta “particular permanente”, “particular improvisado” e “coletivo”.

Esboço do aplicativo do novo CadÚnico mostra exemplo de preenchimento do questionário
(Imagem: Reprodução/ Ministério da Cidadania)

O aplicativo também planeja integrar serviços de pagamento digital como o PIX e um sistema de oferta de vagas de emprego, usando as redes sociais como ponte entre os beneficiários dos programas sociais e empresas e sites de recrutamento, como Catho, Vagas.com.br, Empregos.com.br, além da rede social LinkedIn.

Procurado pelo UOL, o Ministério da Cidadania afirmou que só irá se manifestar sobre as mudanças quando o novo CadÚnico for lançado.

Em fase avançada para a implantação, os estudos já contam inclusive com um design de como funcionará o novo aplicativo. O Plano de Transformação Digital do Ministério da Cidadania, atualizado em julho passado, prevê que o novo CadÚnico seja concluído até julho deste ano.

Especialistas falam em desmonte

Gestores de estados e municípios só tomaram conhecimento do projeto após questionarem representantes do Ministério da Cidadania em reunião no fim de 2020.

“Fomos surpreendidos negativamente com essa chamada modernização, que de moderna não tem nada. É uma tentativa de um desmonte do maior sistema de proteção social estruturado no mundo”, disse José Crus, vice-presidente do Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social

Ex-ministra de Desenvolvimento Social no governo Dilma Rousseff, a economista Tereza Campello considera as mudanças um retrocesso e destaca o fato de estarem sendo implementadas por gestores sem conhecimento técnico da área de políticas sociais.

A Secretaria Nacional do Cadastro Único é comandada pela oficial de inteligência da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) Nilza Emy Yamasaki, enquanto a Secretaria de Avaliação e Gestão de Informações está sob o comando do delegado da Polícia Federal Marcos Paulo Cardoso Coelho da Silva.

“A tecnologia é uma questão secundária. Se puder melhorar, tem que ser feito. Mas a grande tecnologia social do CadÚnico não é um aplicativo. É a mediação por um assistente social ou técnico para entender as necessidades daquela pessoa, que muitas vezes nem sabe do que precisa”, diz Tereza Campello, ex-ministra de Desenvolvimento Social

“Há uma articulação federativa do governo federal com os municípios. Existe uma rede de assistência social montada, que recebeu investimento público. São 5.570 prefeitos assumindo, e a maioria não sabe que vai ser tirado da jogada”, completa a ex-ministra.

Prejuízo ao acesso a outros serviços sociais é outro impacto negativo do autocadastramento, segundo apontam especialistas.

“O Cras é a porta de entrada da política de assistência social. Ao fazer o cadastro e periodicamente ir fazer a atualização, ela tem contato com um grande leque de serviços. Não é raro a gente identificar através do cadastramento uma situação de violência ou extrema pobreza”, afirma Priscila Cordeiro, integrante do Conselho Federal de Serviço Social

Procurado, o Ministério da Cidadania diz que a escolha de nomes da Abin e da PF para cargos de comando na pasta é “sinal de fortalecimento da seleção”, por se tratarem de servidores públicos, e “segue critérios técnicos”. Afirma ainda que eles deixam de responder às suas instituições de origem enquanto ocupam os cargos atuais.

Auxílio emergencial: falhas com impacto bilionário

Apesar de o discurso oficial usar o combate a fraudes como uma das justificativas para implantar o autocadastramento de beneficiários por aplicativo, a primeira experiência nesse sentido, o pagamento do auxílio emergencial, revela que falhas de confiabilidade nos dados causaram desperdício de recursos públicos.

Auditoria do Ministério da Cidadania constatou que ao menos 2,6 milhões de brasileiros receberam indevidamente o auxílio emergencial, com um impacto de ao menos R$ 1,57 bilhão nos gastos públicos, se cada uma dessas pessoas tiver recebido apenas uma parcela de R$ 600.

A informação consta em documento enviado pela pasta à Secretaria de Governo Digital, vinculada ao Ministério da Economia, com um pedido de ajuda para enviar mensagens SMS às pessoas que receberam o auxílio sem terem direito.

A falta de controles adequados na concessão do benefício fez com que mais de 50 mil militares das Forças Armadas recebessem o auxílio indevidamente.