A portaria editada nesta terça-feira (17) pelos ministérios da Justiça e da Saúde para tratar do emprego de forças policiais no combate ao novo coronavírus tem efeito mais simbólico do que prático, e dificilmente levará alguém à cadeia por descumprimento das determinações das autoridades.
A nova portaria reproduz dispositivos da legislação em vigor e de normas baixadas pelo Ministério da Saúde anteriormente, buscando reforçá-las, mas sem ampliar seu alcance de forma significativa ou criar novos instrumentos para conter a pandemia, de acordo com especialistas ouvidos pela reportagem.
As medidas que podem ser adotadas pelas autoridades sanitárias para enfrentar a doença estão previstas na Lei nº 13.979, aprovada em fevereiro. Ela prevê o isolamento e a quarentena e permite implementar outras medidas compulsoriamente, como a realização de exames e tratamentos médicos.
Portaria baixada pelo Ministério da Saúde na semana passada para regulamentar a lei já previa a responsabilização de pessoas que descumprirem ordem de isolamento e quarentena, atribuindo a médicos e autoridades sanitárias o poder de comunicar à polícia e ao Ministério Público os casos de infratores.
Desde o início da crise, autoridades precisaram recorrer à Justiça para lidar com dois casos. Em fevereiro, dois turistas franceses foram internados compulsoriamente para exames em Paraty (RJ). Na semana passada, uma juíza do Distrito Federal obrigou um homem a se submeter a testes.
Com a portaria editada pelo Ministério da Saúde na semana passada, qualquer médico ou agente da vigilância epidemiológica passou a ter autoridade para impor as medidas e avisar às polícias estaduais em caso de descumprimento, sem necessidade de autorização judicial para implementá-las.
A lei em vigor desde fevereiro e a portaria da semana passada também preveem limites e salvaguardas para proteger os direitos individuais contra abusos do Estado, estabelecendo, por exemplo, a necessidade de notificação formal e de justificativas médicas para impor isolamento ou quarentena.
A nova portaria publicada nesta terça-feira vai pouco além das normas já previstas pela legislação, mas procura deixar mais claro que as forças policiais podem ser requisitadas pelas autoridades para o cumprimento de qualquer medida de caráter compulsório, e não só comunicadas das infrações. “Do ponto de vista da saúde pública, o ideal é buscar adesão às medidas de combate à doença por meio do convencimento e de justificativas técnicas, não de medidas punitivas”, diz o epidemiologista Eduardo Hage Carmo, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ligada ao Ministério da Saúde.
A nova portaria sugere que os infratores sejam responsabilizados de acordo com dois artigos do Código Penal, que estabelecem penas para os crimes de infração de medida sanitária preventiva (um mês a um ano de prisão) e desobediência a ordem de funcionário público (15 dias a seis meses de prisão).
“Como esses crimes são considerados de menor potencial ofensivo, não há possibilidade de prisão em flagrante e punições são raras, em geral multas, doação de cesta básica e serviços comunitários”, diz a professora Deisy Ventura, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).
Nesta terça, o governador da Bahia, Rui Costa (PT), pediu a abertura de processo judicial contra um empresário que contrariou ordens médicas e viajou de jatinho com duas pessoas para a Bahia em vez de aguardar o resultado de exames a que se submetera, e que comprovaram infecção no seu caso. A medida foi tomada antes da publicação da nova portaria do governo federal. De acordo com a legislação em vigor, o uso da força policial para implementar medidas sanitárias e a responsabilização de infratores dependem de ações das autoridades locais, sem necessidade do aval de Brasília.
“Em quase 20 anos de profissão, nunca vi um caso de aplicação desses artigos do Código Penal”, diz o professor Thiago Bottino, da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) no Rio. “Apesar do efeito simbólico, não é a ameaça do direito penal que irá conscientizar as pessoas a ficar em casa.”
No domingo (15), o presidente Jair Bolsonaro ignorou recomendações do Ministério da Saúde e das autoridades do Distrito Federal ao incentivar manifestações organizadas por seguidores em várias capitais e sair do Palácio da Alvorada para cumprimentar manifestantes em Brasília.
Em entrevista à Folha de S.Paulo, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, disse que não considerava o comportamento do presidente ilegal. Na sexta-feira (14), o governo do Distrito Federal suspendeu por 15 dias a realização de eventos que exijam licença do poder público, mas não proibiu manifestações. A nova portaria publicada nesta terça começou a ser discutida pelos ministérios da Saúde e da Justiça antes das manifestações de domingo. O ministro da Justiça, Sergio Moro, não fez comentários sobre o comportamento de Bolsonaro, mas disse na noite de terça que a portaria foi editada sob sua orientação.
“[Os infratores] podem estar cometendo um crime e aí vão ter que responder perante a Justiça, podendo até ter que cumprir uma pena de prisão”, disse Moro, em vídeo publicado nas redes sociais. “Tenho certeza de que […] vamos cumprir voluntariamente essas medidas e essas sanções mais drásticas não vão ser necessárias.”